O surto da Indústria de Pneus do Brasil

A matéria acima, veiculada no SBT em junho de 2024, retrata um cenário preocupante do setor de transportes no Brasil: um pleito da indústria nacional de pneus, representada pela ANIP (Associação Nacional da Indústria de Pneumáticos), junto ao governo brasileiro para buscar um suposto equilíbrio entre industrialização nacional e importação de pneus, item que representa o 2º maior custo dos transportes (o primeiro é o diesel).

A Indústria Nacional

Das 22 plantas fabris existentes no Brasil, 19 pertencem a 6 grandes marcas estrangeiras: Bridgestone, Dunlop, Continental, Goodyear (Titan), Michelin e Pirelli (Prometeon), que têm origem no Japão, Alemanha, Estados Unidos, França e Itália. As outras 3 plantas pertencem à Maggion, Tortuga e Rinaldi, empresas brasileiras, porém com foco em mercados de câmaras de ar, pneus para motocicletas, agrícolas e industriais, sem grande representatividade nos gigantes mercados de pneus de Passeio e Carga. Esses dados são da própria ANIP e você pode conferi-los aqui.

O Brasil nunca investiu seriamente em uma fábrica nacional de automóveis e caminhões, dando preferência para que empresas estrangeiras montassem suas plantas aqui e abastecessem o mercado interno. Tudo que compõe estes veículos, portanto, é definido fora do país, e as redes de produção das montadoras apenas replicam essas especificações. A indústria nacional de auto peças tem a função única de fabricar os itens já definidos e montar os veículos e, entre essas peças fabricadas nacionalmente, está o pneu. O pneu é um item caro, que requer trocas frequentes e, por consequência, um volume de produção alto, já que a movimentação de cargas e pessoas no Brasil – um país de proporções continentais – é feita majoritariamente por rodovias. Resumindo, é um bom negócio, que movimenta altas cifras de investimento, faturamento e, principalmente, impostos.

Impostos e medidas de proteção industrial

A carga tributária no Brasil é uma das principais causas do elevado custo de veículos e auto-peças em comparação a outros países. PIS, Cofins, CSSL, IPI, ICMS, IR e tantos outros impostos que incidem de forma direta  e indireta na cadeia de produção, de prestação de serviços a relações trabalhistas, fazem com que as margens de lucro de qualquer empresa do setor sejam espremidas por um mercado com alta concorrência e altos impostos.

Por conta dessa alta carga tributária, fica mais caro produzir e industrializar produtos aqui do que em outros países. Assim, para que seja possível sustentar a indústria nacional, o Brasil possui diversas medidas de proteção, como a cobrança do Imposto de Importação, atualmente em 16%, e medidas como o anti-dumping, que ainda eleva essa carga tributária de importação de produtos de países onde o custo de produção é mais baixo, com o intuito de equilibrar a concorrência no mercado interno.

Sobre o suposto desequilíbrio do mercado

Em 2020, o mundo passou pelo maior surto sanitário visto nos últimos 100 anos: a pandemia do COVID, que levou a vida de mais de 700 mil brasileiros e quase parou a economia do país. E foi nesse período de caos que as indústrias de pneu nacionais provaram sua natureza de meras filiais internacionais, aumentando agressivamente a exportação de suas produções – conforme dados da própria ANIP – e deixando nosso mercado interno quase totalmente desabastecido. Com o risco iminente de ver a logística do país parar por falta de insumos e greves no setor de transporte, num dos momentos mais tensos da nossa história, o presidente do Brasil em exercício na época se viu obrigado a, numa medida desesperada, zerar os impostos de importação de pneus de carga em 2021. Fato é que a indústria nacional preferiu exportar sua produção para mercados onde o lucro era mais atrativo após uma crise, deixando o país completamente dependente da importação para sobreviver. Felizmente, a medida deu certo: os produtos importados salvaram o setor de transportes durante o período da pandemia. Passados dois anos, em 2023 o imposto retornou para 16%, reestabelecendo o equilíbrio de margem entre a importação e a produção nacional.

Agora, as indústrias nacionais (?), que não foram capazes de atender o mercado nacional durante a crise trazida pelo surto da COVID, querem mais que dobrar o imposto, alegando a mesma ameaça do passado: a indústria está perdendo faturamento por um suposto desequilíbrio no mercado com “um surto de importação desleal de pneus da China”, como mencionado em nota oficial no vídeo acima, e por esse motivo demissões podem ocorrer, devendo o governo intervir para restaurar o equilíbrio, aumentando o Imposto de Importação em mais que o dobro da taxa atual, para absurdos 35%.

Curiosamente, a própria indústria “nacional” importa pneus de suas matrizes situadas em outros países. Sendo assim, por que solicitariam aumentar um imposto que também os afeta? O que realmente mudou nesse curto período para gerar tamanho desequilíbrio, a ponto de estarem dispostos a sacrificar sua própria margem na sua parcela de importação?

A realidade é que temos uma indústria que escancaradamente não investiu em modernização no país tentando se defender da eficiência asiática, que possui fábricas melhores, mais automatizadas e que já fabricam pneus melhores que os nacionais. Sim, você já pode ter ouvido a história de que pneus importados possuem durabilidade menor que os ditos “nacionais”, mas essa falácia já se provou falsa há bastante tempo. Antigamente, a grande maioria dos importadores trazia muitos produtos de qualidade baixa a intermediária. Hoje, porém, existem no mercado diversas opções importadas que possuem durabilidade igual ou até mesmo superior, competindo com produtos premium de marcas já consolidads. É um sacrifício, portanto, que estão dispostos a fazer com o único objetivo de combater os pneus importados da Ásia, que merecidamente dominaram o mercado brasileiro e hoje representam quase metade do volume consumido no país.

Algo de errado acontece em nossas fábricas nacionais, e a conta não pode ser paga pela população. Se tal medida for aprovada, será inevitável o aumento dos preços de tudo que depende de transporte no país: engana-se quem acredita que a indústria nacional não vai aumentar sua própria margem e vender seus produtos mais caros sem a concorrência dos produtos importados. Alegam, portanto, o risco de desequilíbrio enquanto eles mesmos devem causá-lo em um futuro não tão distante.

O brasileiro já paga o preço da ineficiência de seu próprio governo, que o onera abusivamente todos os dias com uma das maiores cargas tributárias do mundo. Agora, uma entidade de um setor privado tenta usar a mesma sistemática para forçar o governo a aumentar ainda mais os impostos e ajudá-la a esconder sua própria ineficiência em reduzir custos e investir em fábricas melhores. O investimento do mercado asiático em eficiência assusta cada dia mais nossa indústria, afinal, um pneu que vem do outro lado do mundo, com todos os impostos, custos de fretes, taxações e proteções anti-dumping consegue ser mais barato que um produto nacional e ter performance similar ou mesmo superior.

A ANIP parece esquecer que, no último surto (o de verdade, a terrível crise de 2020), a solução foi lucrar fora do país. Agora, defende que a solução é aumentar os impostos, usando os empregos de seus próprios funcionários como reféns para colocar a economia do país em risco mais uma vez.

Deveríamos ser melhores, produzir com mais eficiência, reduzir custos e impostos de nossa indústria, e não colocar mais essa conta no bolso de nossas famílias. Isso não é um “surto”, ou talvez até seja, mas não no sentido do aumento de importação de pneus chineses, e sim uma crise psicótica de um aglomerado privado que se recusa a investir em modernização no país, que claramente não tem preocupação com a população brasileira e vê suas margens de lucro ameaçadas pela mera existência de uma concorrência real.

#35nao